10/12/2015

Dramaturgia





Eu sempre quis que ela estivesse do meu lado, ela estava constantemente certa. Na bilheteria do teatro eu me abri um tanto. Ela tentou fazer o mesmo. Nas nossas crises eu chorava um pratinho aguado. Às vezes era preciso que ela passasse os dedos no meu rosto para perceber. 

Ela ficava desatinada: - O real é aqui. Lá fora eu já não sei. Lá fora vai atéééééééé……. Eu sei de tudo, por isso eu tenho medo. E escorria pela porta, malhando o peito, descascando a madeira com as unhas, aproveitando-se mais um tanto da liberdade de soluçar igual uma louca. Eu desabava em seus colos e resmungava para dentro. Às vezes, colocava o aguaceiro em dia. Às vezes queria puni-la. Uma vez a tranquei dentro de um quarto. Ela não ficaria zangada comigo. Me perguntou repetidas vezes o por quê, sem entender que não havia motivo. Eu achava justificativa o suficiente: você está tratando com uma louca.
 
Fomos agilizar uma produção. No caminho, alguns carros nos atropelaram e algumas pessoas nos atravessavam, nenhum muambeiro nos atendia e na verdade ninguém nos enxergava. Roubamos um pastel, no meio da passagem, invisíveis. Muitas vezes eu me juntava a ela para lhe ser útil. Quanto mais eu o fazia, mais recebia em troco. Talvez neste ano eu tenha percebido o quanto ela se machuca: uma vez, saindo de cena, deixou a rótula do joelho pra trás. Continuou a peça até o fim. Em outro momento, no aquecimento para apresentação, esmagaram a unha do dedão do pé. Trincaram os ossos. Ela já bateu a cabeça. Já lascou o dente. Já foi atropelada. Já deu soco na cara, tem faixa de karatê, executou chupeta em carro, quebrou garrafa de cerveja e investiu contra o misógino asqueroso… Eu não me preocupo. 

Cultivamos um grande amor à mesa de bar. Pagamos uma porção de reais, uma cerveja e um maço de cigarro para cigana ler nossa sorte. Umas previsões bem vagabundas, deveriam dizer, na verdade: tua vida tá no caminho certo. Nem loiro, nem moreno. Vocês duas.

Nos beijamos várias vezes. Em situação de carnaval. No banheiro, bebendo água da pia. No meio de mais duas ou três pessoas. Fugindo da orgia lésbica. Evitando homens. Mas cotidianamente, sentamos lado a lado, bebemos, nos desesperamos sobre trabalho, juntamos ideias, casamentos, vendas, festas, histórias, filmes, mudanças, a porra toda. Quando eu estou em outro continente, mando mensagem pra ela pedindo ajuda, perdendo minha carteira de motorista, procurando a delegacia, acordando num bairro bizarro. Ela me pede muito pouco, ou quase nada.


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